Este texto é de meu irmão, Davison. O personagem-narrador chama-se Edmund Bonaparte, um sujeito meio maluco, mas gente fina. :-)
Visão do Mundo
Por Davison Lampert
Certo dia, olhei para o horizonte, cerrei as sobrancelhas e, num furioso impulso, disse:
- BASTA!
Não podia mais tolerar aquela situação. Tinha que tomar medidas enérgicas e acabar com aquela palhaçada de uma vez por todas. Estava decidido, e nenhuma força natural iria impedir-me de seguir minha resolução. Fui ao oftalmologista, peguei minha receita e mandei fazer meus óculos.
Já estava cansado de perder o ônibus porque não podia ler sua identificação até o momento em que ele estivesse a oito metros de distância. Já estava farto de olhar para o mundo e ver somente borrões verdes, no lugar das árvores, manchas cinzas, no lugar dos prédios, e massas disformes, no lugar das pessoas.
Certamente, como todo o lunático, estou exagerando um pouco nos fatos. Minha miopia é de somente meio grau e provavelmente o mundo nunca foi tão medonhamente distorcido quanto eu acreditava estar vendo. É claro que, somados o meio grau de miopia com o outro meio grau de astigmatismo, eu era acometido por um efeito equivalente a um grau de miopia em cada olho. E esse um grau de miopia me estava levando a um grau de loucura que achei por bem aniquilar logo no início, antes que tomasse maiores proporções.
Apesar de minha teimosia e de minha profunda resistência em utilizar equipamentos de auxílio visual, acabei por acatá-los. Entretanto, sabia que não poderia valer-me de armações muito espessas, já que utilizo muito da visão periférica para me movimentar pelo mundo, e a idéia de ter meu campo visual significativamente reduzido não me trazia encanto. Já havia experimentado aqueles óculos de segurança que têm aros grossos e laterais cobertas por uma tela plástica e que, para o meu caso, poderiam muito bem ser chamados de óculos de insegurança, pois não houve cabo, trilho, pedra, estrutura, desnível, rachadura ou qualquer outro elemento saliente próximo ao nível do solo que eu não tivesse chutado ou tropeçado.
Por fim, após muita busca, encontrei a armação que satisfazia a todos os aspectos ópticos, práticos e econômicos de minha necessidade visual. Uma armação leve, muito delgada e, o melhor de tudo, barata (levando-se em conta o superior benefício proporcionado).
É bem verdade que algumas vezes chego até mesmo a esquecer que a estou utilizando, a ponto de enfiar os dedos na lente quando da necessidade de esfregar os olhos. Alguma alma furiosa e acusatória poderia apontar-me o dedo e, bufando, inquirir:
- Por que você não fez isso antes?
Talvez essa demora em minha decisão me tenha proporcionado algo muito melhor em longo prazo. Devo confessar que talvez essa tenha sido uma das melhores surpresas que já me aconteceram até o momento. Quão inesquecível foi redescobrir, depois de tantos anos, todos os detalhes da natureza, as folhas, as rachaduras das cascas das árvores, o aspecto granuloso das nuvens, a rica quantidade de matizes que só um pôr-do-sol pode exibir, e todos esses minúsculos pormenores que carregam a essência do que é belo nesse mundo e que eu já havia esquecido.
De certa forma, todos nós, com o passar dos anos, nos acostumamos com essas particularidades a ponto de não mais as perceber, e um mundo cheio de detalhes e rico em beleza é simplesmente ignorado e substituído por um fundo cinza onde desempenhamos nossa rotina.
Aqueles óculos podem ter somente remediado a miopia de meus olhos, mas com certeza curaram a miopia de minha mente.
Fonte: diariodeumlunatico.com.br